Gilson Santiago e Claudio Carvalho
A crise do transporte público ganha novos contornos em Vitória da Conquista. Após a falência de uma empresa, a cidade que – nas palavras do prefeito Herzem Gusmão (MDB) – tinha condições de ter três ou mais empresas em circulação passou a ter apenas uma empresa-monopólio. Operando em contrato emergencial, os efeitos iniciais já se mostravam desastrosos: a empresa não tinha frota nem pessoal suficiente para atender suas linhas e as linhas da antiga concorrente. O resultado foi meses com atraso, falhas e inexistência de alguns serviços prestados pela Viação Cidade Verde. Caducado o contrato emergencial desde fevereiro, dois meses depois a Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista parece não tratar o caso como prioritário: após se ver no centro da tormenta urbana, o transporte público foi assentado do jeito que está e ficou. E ficou horrível. Confira o artido na íntegra.
A lógica empregada pela Cidade Verde para definir onde alocaria seus novos ônibus e novo pessoal seguiu um plano muito simples e isso é evidente: quais as linhas que têm mais público? Quais os bairros mais populosos que necessitam atravessar a cidade para chegar ao trabalho ou à faculdade? Melhor: quais destes bairros, mudando a logística ou não, necessitam pegar mais de um ônibus? Linhas importantes deixaram de existir, literalmente: é o caso do D31 – Bairro Brasil via Santos Dumont x UESB. Ressurgiu posteriormente como D44, ignorando a parte em que ia até a UESB e obrigando muitas pessoas a pegarem dois ônibus para chegar ao destino. Por óbvio, a alocação de linhas de ônibus perpassa o interesse financeiro do lobby de transporte público, que amealhou até mesmo uma isenção de ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza) em articulação pesada com o Poder Público em tom de ameaça: ou dão a isenção, ou saímos da cidade. E funcionou. A pressão política que grandes grupos de transporte público arrancou ainda um aumento de passagem que os passageiros amargam até hoje e que hoje beira os quatro reais. É esse o preço, atualmente, do direito ao transporte público, com qualidade baixíssima.
E o preço exorbitante significa uma vida restrita em outras direitos como morar, comer e ter saúde. É preciso ir trabalhar, as cidades estão cada vez mais dispersas e descontinuas, a mobilidade ativa (ciclovias por exemplo) ainda não é realidade em grande parte de Vitória da Conquista. Como o local de trabalho fica cada vez mais longe do local de moradia o valor da passagem sempre tem impacto significativo no orçamento do trabalhador e da trabalhadora por ser algo indispensável.
Projetada para os carros, Vitória da Conquista sofre com a dificuldade de inserir o transporte público como prioridade, como assevera o Plano Diretor de 2006. E parece querer repetir ou não se importar com esse problema para o próximo PDDU ou com o plano estratégico 2040. A democracia, no âmbito da mobilidade urbana, sucumbe diante da cidade que continua sendo projetada para atender prioritariamente a circulação dos automóveis particulares. A união na forma de acordo implícito entre Estado e capital constrói fronteiras sociais que impedem o desenvolvimento dos bens coletivos, sustentáveis, independentes e de baixo custo, a exemplo dos transportes públicos.
Enquanto isso, a Cidade Verde começa a devolver o lote emergencial que deveria ter devolvido há dois meses e seu corte começa, obviamente, nos bairros periféricos da cidade. Começa por abandonar aquelas partes da cidade que parecem estar fora da cidade, de tão pouco que o Poder Público pensa nelas: Pradoso, Santa Marta, Senhorinha Cairo e Lagoa das Flores precisarão encontrar outro meio de chegar ao centro da cidade, porque o capital empresarial assim decidiu que não é lucrativo transportá-los ao preço de R$ 3,80. Reféns da crise urbana, da ausência de planejamento que tenha impactos reais na vida na cidade, é a população que, mais uma vez, será empurrada para fora da cidade, será obrigada a depender de vans ou outras formas que convencionou-se chamar “transporte alternativo”.
A mobilidade deve dialogar com os destinos. Destinos que devem incorporar necessidades mas também e diríamos sobretudo oportunidades. Pois esse componente é comumente esquecido pois o transporte público-privado na verdade se rege pelo lucro e pela resposta mínima à sobrevivência: trabalho, saúde, educação.
E no plano real das cidades em disputa, quem lucra nunca é a população, mas quem sabe manipular as peças do jogo urbano e fazer pressão política. A cidade foi tomada de assalto pelos capitais (financeiro, automobilístico, imobiliário etc), mas não é tarde demais para reverter o jogo. Não podemos aceitar a mercantilização do direito de ir e vir.
[1] Gilson Santiago é Graduando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade – GPDS. Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa – NAJA. [email protected]
[1] Claudio Carvalho e Doutor em Desenvolvimento Regional e Urbano. Mestre em Direito. Professor adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade – GPDS. Integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Alternativa – NAJA. [email protected]