Tairone Porto: Aventuras na Terra do Juvêncio

Foto: BLOG DO ANDERSON

Tairone Ferraz Porto

Estávamos na 7ª série e estudávamos numa das salas do primeiro andar do prédio principal, bem em frente à Avenida Otávio Santos. Terminado o intervalo do recreio, a galerinha esbaforida começou subir as escadas e a última a entrar foi Patrícia carregando um álbum de figurinhas e cantarolando baixinho “Essa noite não tem luar” dos Menudos, sucesso da época. Depois dela, entrou tia Rose. Àquela altura, como já fazíamos parte do ginásio não havia mais essa coisa de “tia”, estávamos crescendo, de modo que os nossos mestres eram chamados apenas de professores(as). >>>>>

Mas tia Rose era exceção, assim como tia Jaci, pró de Matemática.

O problema é que as duas tinham sido nossas professoras no primário, daí o porquê do “tia” delas ter colado na gente igual a chiclete PLOC, pelo menos foi assim com a maioria de nós.

Eram dois amores, mas naquele dia tia Rose entrou na sala que nem uma araponga, que nem uma arara, e foi logo colocando o material de trabalho sobre a mesa e as mãos nas “cadeiras”, assim como fazia a tia Anastácia do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Todos perceberam que havia algo errado, que ela não estava bem.

Daí ela olhou para a turma inteira com um olhar 43 e fulminou:

⁃ Como pode um aluno do Juvêncio Terra (ainda com as mãos nas “cadeiras”)… do Juvêncio Terra (repetiu)… um aluno da 7ª série… da 7ª série (repetiu de novo) não saber escrever alface? A-al fê-a-fá cê-cê!!!ALFACE!

E eu cá com os meus botões, pensei: esse é burro mesmo!

E para quem ainda não sabe, o olhar 43 é aquele assim de olho esquerdo apertadinho, mirando o alvo com o direito abertão!

E a tia ali de nariz empinado, testa enrugada, olhinho esquerdo quase fechado, sobrancelha direita arqueada, foi falando e folheando os ditados de palavras, que tínhamos feito na aula anterior, enquanto eu, querendo imaginar quem seria o burro, caçava discretamente o energúmeno que não sabia escrever o nome daquele vegetal.

Na minha cabeça tia Rose estava absolutamente certa, afinal, àquela altura do campeonato (7ª série), a gente poderia até não saber escrever corretamente a palavra jiló, mas alface?

A-al fê-a-fá cê-cê???

Sim, porque para mim, ainda que fosse errado, era perfeitamente compreensível que eu ou qualquer outro colega pudesse escrever “giló” assim com “g”, mas “alfasse” com dois “s”, não, isso não, até porque eu tinha acabado de ler “A ilha perdida”, da coleção Vaga-lume, inteirinho, de cabo a rabo!

Foi esse o primeiro livro que eu li na vida e quem já tinha lido um livro desses inteirinho e já estava começando a ler “Zezinho o dono da porquinha preta”, tinha a obrigação de saber que alface não é escrita com dois “s”, era o que eu pensava.

Mas quando a tia Rose disse que o mesmo aluno também não tinha acertado a escrever “caxumba” eu logo concluí que aquilo tudo era frescura e das grandes.
Ora, eu tinha certeza absoluta de que eu tinha escrito “caxumba” com “x”, mas esta era, em minha opinião, uma palavra muito menos relevante do que “jiló”, por exemplo, porque este legume pode fazer parte do dia a dia de qualquer um, mas “caxumba” só dá uma vez na vida e só tem risco de descer para os sacos dos meninos e apenas dos meninos, eis que as meninas nem saco têm.

Frescura ou não, o certo é que a tia Rose se aproximou da carteira de Marcone, o Montanha…

Aí eu vibrei!

Foi ele. Se lascou, pensei!

Fabiana é que não poderia ter sido, porque ela, tenho certeza, escreveria corretamente estas palavras até em javanês!

“Toma, ontem teve baba em sua casa e eu não fui convidado… toma, seu rechonchudo branquelo…”, elucubrei, pensando ser Marcone o culpado.

A casa de Marcone era melhor, mas muito melhor do que o Clube Social Conquista e era a maior que eu já tinha entrado.

Existia uma “estória” de que um dia duas funcionárias se encontraram numa das salas da casa e uma perguntou à outra:
⁃ fulana, que novidade agradável você aqui… Foi você que foi contratada ontem para cuidar de Nicolinha?

Nicole, para quem não sabe, era irmã dele…

⁃ Não, beltrana, eu trabalho aqui há dois anos…

⁃ “Arrr Maria”, e eu há três, esse mundo não é tão pequeno assim, não.

Por aí vocês já podem ter uma ideia do tamanho da residência da família Montanha, da qual eu fui preterido do baba.

Aí, gente, quando eu de soslaio fitei tia Rose ela já estava dando um rodopio, que nem aquelas birrinhas, aqueles piãozinhos que a gente jogava na rua quando não era época de gude.

Ela, acreditem, voltou para a mesa dela, sentou, fungou, olhou para mim com um olhar 1.849, que é o mesmo 43, só que ao quadrado, chamou-me pelo nome completo de forma forte e pausada e, por fim, estendeu-me o meu teste, assim: “T A I R O N E F E R R A Z P O R T O, seu ditado de palavras! TOMA.”

Todo mundo olhou para mim achando que eu tinha culpa no cartório, mas eu só fiquei mesmo foi com raiva de Montanha, porque ele, pela cara que fez, achou, mais do qualquer outro, que eu tivesse mesmo escrito alface com dois “s” e caxumba com “ch”, mas se lascou, porque na minha alface não tinha dois “s” e na minha caxumba tinha mesmo era um “x” de Xuxa e não um “ch” de chuchu, outro legume que estava no ditado.

E tia Rose foi chamando um por um entregando-lhes os ditados.

Terminada as entregas, ela fitou-me dos Kichutes às orelhas, no que eu tive vontade de lhe dizer bem devagarinho e em alto e bom som: “sai de mim Ma-riii-aaaaa Ro-si-cleeeerrrr”!!!

Mas acabei ficando caladinho mesmo, não dei um piu, porque eu era assim mesmo: meio frouxo para essas coisas!

Aí ela, ainda olhando para mim, disse para a turma toda que antes de “e” e de “i” não poderia ser usada a cedilha e que antes de “p” e “b” só se usava mê!

E foi assim que eu aprendi a nunca mais escrever alfaÇe com “cedilha” e nem caxuNba com “nê”!

Tairone Ferraz Porto
Advogado


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