Caso de Justiça: MP-BA recomenda que líderes religiosos deixem de praticar intolerância em Vitória da Conquista

Foto: BLOG DO ANDERSON

O Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) recomendou aos líderes e entidades religiosas do Município de Vitória da Conquista que se abstenham de práticas que caracterizem discriminação e intolerância religiosa, seja por meio de manifestações ou atos dirigidos a um grupo, coletividade ou pessoa. O documento publicado na edição desta segunda-feira (10) do Diário da Justiça Eletrônico (DJE) também cita eventuais episódios de preconceito por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero. O parquet salienta que o descumprimento da sugestão poderá acarretar em eventual responsabilização nas esferas civil e criminal. A recomendação editada no último dia 27 de janeiro pela promotora Guiomar Miranda de Oliveira Melo, titular da 11ª Promotoria de Justiça da Comarca de Vitória da Conquista, também requisita que o documento seja divulgado no âmbito dos templos religiosos e locais de culto, para conhecimento dos fiéis. A recomendação considera fatos descritos no contexto de um Procedimento Administrativo que relata episódios reiterados de intolerância religiosa e discriminação protagonizadas por um pastor evangélico e membros de sua igreja. O MP-BA enfatiza que no exercício da liberdade religiosa é assegurado o direito de pregar e divulgar o pensamento de acordo com convicções e entendimentos doutrinário ou teológico – desde que essas manifestações não incitem em discriminação, hostilidade ou violência. A notícia de atos violentos praticados contra espaços onde são realizadas manifestações da religiosidade de matriz africana também são citados como motivadores da recomendação.

PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Nº IDEA 644.9.120181/2019

RECOMENDAÇÃO

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA, pela Promotora de Justiça signatária, no uso de uma de suas atribuições conferidas pelo art. 129, II e IX, da Constituição da República, pelo art. 6º, XX, da Lei Complementar nº 75/93; art. 27, parágrafo único, IV, da Lei nº 8.625/93 e art. 75, IV, da Lei Complementar Estadual nº 11/96, tendo por base os elementos de informação contidos no Procedimento Preparatório em epígrafe e

CONSIDERANDO os fatos noticiados no bojo do Procedimento Administrativo em epígrafe, que apontam para a prática de reiterada intolerância religiosa e discriminação por parte de pastor e membros de igreja evangélica, localizada nesta Cidade;

CONSIDERANDO que supostas declarações proferidas pelo agressor, direcionadas à vítima, como “macumbeira tem que morrer, sapatão tem que morrer, homossexualismo tem que morrer, feiticeira tem que morrer, que a casa da declarante é o ponto do demônio”, referindo à religião de matriz africana como “negócio do satanás e legião de nigrinhas”, em tese, manifestam grave preconceito e ódio por motivo religioso e de orientação sexual;

CONSIDERANDO a notícia da intolerável prática de atos violentos contra espaço físico onde são realizadas manifestações da religiosidade de matriz africana, nesta Cidade;

CONSIDERANDO que o art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988, reza ser inviolável a consciência de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

CONSIDERANDO que o art. 5º, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988, determina que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

CONSIDERANDO que a liberdade de crença religiosa envolve “a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo”[1];

CONSIDERANDO que o Programa Nacional de Direitos Humanos possui, entre suas metas, a prevenção e o combate à intolerância religiosa, “inclusive no que diz respeito a religiões minoritárias e a cultos afro-brasileiros”;

CONSIDERANDO que o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) dispõe, em seu art. 24, inciso VIII, que o direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende “a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais”;

CONSIDERANDO que o mesmo diploma legal estabelece, em seu art. 26, que o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores;

CONSIDERANDO que a Constituição do Estado da Bahia, no seu art. 275, dispõe ser dever do Estado “preservar e garantir a integridade, a respeitabilidade e a permanência dos valores da religião afro-brasileira”;

CONSIDERANDO que a Lei Estadual nº 13.182, de 06 de junho de 2014, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, define intolerância religiosa como sendo “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais ou liturgias, e que promove danos morais, materiais ou imateriais, atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou seja capaz de fomentar o ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos”;

CONSIDERANDO que a conduta exposta e outras semelhantes configuram prática de racismo religioso, caracterizado pela discriminação dirigida às práticas religiosas e às tradições associadas à história e à cultura do povo negro;

CONSIDERANDO que tais condutas violam princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, como a dignidade da pessoa humana e a igual liberdade de crença religiosa, gerando, com tais atos, dano moral coletivo, que deve ser enfrentado com medidas reparatórias e também preventivas;

CONSIDERANDO que atos ilícitos que violam o direito de todos à liberdade religiosa devem ser punidos de acordo com a legislação civil e penal brasileira;

CONSIDERANDO que o art. 208 do Código Penal estabelece a pena de detenção de um mês a um ano, ou multa, àquele que “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa” ou “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”;

CONSIDERANDO que o art. 140, § 3º, do Código Penal estabelece que aquele que pratica o crime de injúria mediante a “utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” será punido com a pena de reclusão de um a três anos e multa;

CONSIDERANDO que o art. 20 da Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, pune a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”, com pena de reclusão de um a três anos e multa;

CONSIDERANDO que em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no bojo da ADO 26/DF, aprovou-se a tese de que condutas homofóbicas ou transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido em sua dimensão social, tipificam crimes definidos na Lei nº 7.716/1989, constituindo motivo torpe, em caso de homicídio doloso;

CONSIDERANDO que a Corte Constitucional entendeu que o conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta de manifestação de poder destinada ao controle ideológico que objetiva à subjugação social e à negação da humanidade e da dignidade daqueles que integram grupos vulneráveis (LGBTI+), que são submetidos a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito;

CONSIDERANDO que, ainda nessa decisão, esclareceu-se que a repressão penal à prática de homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, a cujos fiéis e ministros é assegurado o direito de pregar e divulgar suas convicções segundo a sua orientação doutrinária, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e liturgia, “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”;

CONSIDERANDO que é atribuição do Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, dentre os quais se destaca a proteção dos direitos humanos e o combate à discriminação;

CONSIDERANDO que cumpre ao Ministério Público expedir recomendações visando ao respeito dos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis (Lei Complementar Estadual nº 11/96, art. 67, VI; art. 6º, inciso XX, da Lei Complementar nº 75/93 c/c art. 15 da Resolução nº 23/2007 do Conselho Nacional do Ministério Público);

RECOMENDA

Aos líderes e entidades religiosas localizadas no território do município de Vitória da Conquista, que se abstenham de praticar condutas caracterizadoras de discriminação e intolerância religiosa ou por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, por meio de manifestações e atos dirigidos a determinado grupo ou coletividade ou a uma única pessoa, sob pena de responsabilização nas esferas civil e criminal;

Ressalte-se que no exercício da liberdade religiosa é assegurado o direito de pregar e divulgar o pensamento de acordo com as convicções e com o entendimento doutrinário e/ou teológico de cada segmento religioso, com o objetivo de conquistar prosélitos e praticar atos de culto, desde que tais manifestações não incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de suas crenças; de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

REQUISITA a divulgação desta Recomendação no âmbito dos templos religiosos e locais de culto, para conhecimento dos fiéis.

Nos termos do art. 27, Parágrafo único, IV, da Lei nº 8.625/93, fica estabelecido o prazo de 10 dias úteis para que os LÍDERES RELIGIOSOS destinatárias informem ao Ministério Público do Estado da Bahia o acatamento ou não desta Recomendação e as providências a serem adotadas para promover a sua publicidade e disseminação do conteúdo junto aos seus fiéis seguidores.

Encaminhe-se cópia desta Recomendação aos destinatários, conforme relação de Instituições religiosas existentes neste Município, especialmente ao Pastor mencionado nos autos deste PA e à Reclamante; ao Gabinete Civil da Prefeitura Municipal, para conhecimento e publicidade internamente; ao Conselho Municipal da Igualdade Racial, bem como ao CAODH/MPBA, por meio eletrônico, e à Secretaria-Geral, para publicação no DJe.

Vitória da Conquista/BA, 27 de janeiro de 2019.

GUIOMAR MIRANDA DE OLIVEIRA MELO

Promotora de Justiça


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