Cláudio Félix: A migração do desespero

Foto: BLOG DO ANDERSON

Cláudio Félix | Professor da UESB

“Sobre a volta de pessoas ao interior do Nordeste em tempos de crise sanitária e do capitalismo”

Os mestres Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira compuseram a música a volta da asa branca para retratar a alegria do retorno das pessoas que foram obrigadas a migrar do sertão nordestino para outras regiões. “A seca fez eu desertar da minha terra. Mas felizmente Deus agora se alembrou de mandar chuva Pr’esse sertão sofredor. Sertão das muié séria dos homes trabaiador(…)”.  Nessa estrofe ganha forma poética a alegria da chegada à terra após a dor da partida. Porém, a fuga das pessoas dos grandes centros urbanos nestes dias sofridos e incertos de crise sanitária tem se dado pelo desespero de milhares de trabalhadores que desamparados, perdendo ou prestes a perder seus empregos no sudeste, sem nenhuma confiança no Estado e no atual governo quanto à proteção de sua saúde, chegam às dezenas em ônibus e outros transportes clandestinos às cidades do interior da região nordeste. Continue a leitura.

Os blogs das cidades baianas, por exemplo, dão as manchetes: “Moradores de queimadas e cansanção registram desembarque de pessoas em ônibus na manhã desta sexta-feira” (calilanotícias.com); “Receber os parentes ou não? Ônibus vindo de São Paulo com pessoas que são de Macarani causa apreensão na população” (Revista Geral Bahia);  “ônibus clandestino é interceptado em Caetité; passageiros de São Paulo para Livramento” (Bahia Notícias).

Com o pavor natural gerado por uma pandemia causada por um vírus letal, a viagem de volta, às pressas, é uma das expressões da catástrofe na qual a humanidade está confrontada e chega ao Brasil:  às nossas cidades, bairros e ruas.

O medo dos moradores das cidades do interior se amplia. O que antes deveria ser motivo de alegria, de rever parentes, amigos, amigas queridas se tornou um dilema, temor e também uma espécie de segregação gerada pela insegurança da falta de recursos da saúde pública para combater a pandemia e socorrer os casos graves nos hospitais.

Mas o retorno dessas pessoas ao interior nesses dias complicados não deve ser atribuído simplesmente à natureza, ao corona vírus. Assim como a pobreza e a migração do sertanejo ou das pessoas de outras regiões do nordeste não deve ser atribuída à falta de chuvas ou a fenômenos naturais.

Há uma relação profunda entre esse fenômeno do que podemos chamar de “migração do desespero” e a falência de um modo de organização e produção da vida numa escala planetária.

Entendemos que a pandemia não é causa, mas uma aceleradora da política de destruição e morte promovida pela política exploratória do imperialismo que joga na miséria milhões de seres humanos por meio da guerra, de golpes de Estado, exploração ou desemprego. Além disso, as políticas de ajustes fiscais promovidos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) desde 2008  vem destruindo os sistemas de saúde pública no mundo inteiro, como informa a Declaração dos Secretariado Internacional da IV internacional publicado em 04 de abril de 2020.

Vamos a algumas cifras para discutir melhor a lógica destruidora deste sistema falido, ainda não morto ou liquidado, chamado capitalismo que está em sua fase imperialista. No ano de 2018 foram destinados 1,8 trilhão de dólares de orçamentos públicos no mundo para o setor militar, enquanto a OMS estima que precisaria de 7 bilhões de dólares para lidar com o vírus!

Ora, gastam-se trilhões com armamentos, injetam-se trilhões para a especulação financeira com o simples objetivo de fazer rodar a máquina de lucro que gera benefícios para poucos lançando a grande maioria da população mundial em situação cada vez mais deplorável, como podemos constatar em mais alguns números da barbárie: a) 821 milhões de seres humanos passam fome, e a cada ano 10 milhões morrem de fome; b) há 200 milhões de desempregados no mundo (e já se amplia esse número por conta da crise); c) 200 bilionários em escala mundial detém dois terços da riqueza da humanidade; d) no Brasil, 1% (empresários, banqueiros, especuladores) concentra uma renda igual a de mais de 100 milhões de brasileiros. (dados da OMS, ONU, OIT). Como se vê, amplia-se a cada dia a desigualdade social.

No Brasil, a política do ajuste fiscal que libera recursos para a especulação dos banqueiros e investidores na bolsa de valores retirou muitas verbas dos serviços públicos. A  Emenda Constitucional 95, que o então deputado e atual ministro da saúde (Mandeta) votou a favor, reforça o processo de desmonte do Sistema Único de Saúde. Para se ter uma ideia, o SUS nos últimos três anos deixou de receber 22 bilhões de reais – o que deixa o Brasil em condições ultrafragilizadas para enfrentar a pandemia (Jornal O trabalho, n. 862).

E o que dizer da proposta do presidente Bolsonaro e sua camarilha levando os trabalhadores à morte sob o slogan assassino de “O Brasil não pode parar”; além de constantes discursos para dar fim ao isolamento social? Ou a demora para fazer chegar os R$ 600,00 ou R$ 1.200,00 para os mais pobres?

O povo trabalhador, abandonado à sua própria sorte não encontra recursos para manter sua saúde e os que podem vão à procura do recanto seguro dos amigos e parentes no interior do nordeste. Para qual melhor lugar ir nessas circunstâncias?

Portanto, excluir ou expurgar essas pessoas que vêm do sudeste para as cidades interioranas da região Nordeste como se fossem seres nocivos que não podem estar no convívio social é, no mínimo, um grande equívoco. Atribuir a responsabilidade de propagação do vírus às pessoas individualmente é uma irresponsabilidade e um crime.  Antes de tudo é fundamental que o poder público, as autoridades em saúde acompanhem de perto e garantam as condições para um isolamento seguro dessas pessoas que não têm a quem recorrer. Esse não pode ser um caminho a ser percorrido isoladamente, cada um por si, como quer Bolsonaro e  seus fanáticos terraplanistas-obscurantistas.

A crise é profunda no interior de um sistema falido que não apresenta alternativa positiva à maioria!

Todavia, a crise sanitária e econômica e seu peso jogado sobre as costas do povo (trabalhadores formais, desempregados e informais; assim como pequenos e médios empresários), já irritam as pessoas e os sinais no Brasil e ao redor do mundo demonstram que essa insatisfação se amplia fortemente. Seja nos barulhaços diários nas janelas e casas brasileiras, seja nas greves na Europa, nas mobilizações de servidores da saúde no continente europeu que, na linha de frente do combate ao corona vírus, lutam por segurança e condições de trabalho.

É necessário buscar saídas. No plano imediato e no médio e longo prazo. Em âmbito da solidariedade internacional e nacional.

No plano imediato entendemos que a luta é pela proteção à vida, aos direitos e ao emprego. Mas isso, no Brasil, tem um empecilho: o governo federal nas mãos de um grupo que promove o caos e destruição. Lutar pelo fim do governo Bolsonaro (sem Mourão, Mouro, Mandeta, militares) é um desafio para as organizações da classe trabalhadora e campos progressistas mesmo nesta condição de extrema defensiva em que a maioria se encontra. Por sua vez os “moderados” de direita (Dória, Luciano Huck, FHC, Mandeta), que seguem na mesma linha destruidora dos direitos e da soberania tocada pela batuta de Bolsonaro e Guedes, só que de forma mais educada, são uma grande armadilha nesse combate. Não dá pra trocar seis por meia dúzia!

Não temos muitas alternativas senão a luta e a organização, resistência e contraofensivas para enfrentar com nossas organizações sindicais, populares, de juventude e político partidárias o combate para derrotar os que arrastam a humanidade e o meio ambiente para condições cada vez mais degradantes e letais.

As organizações da luta social devem estar atentas, mais do que nunca, a  pressionar para que se garanta a proteção do poder público aos que continuam migrando em busca de proteção nas casas de parentes no interior; bem como dos que estão tentando se proteger como podem; dos que estão  voltando às suas atividades cotidianas de trabalho e colocando sua vida e de outros em risco pela inexistência de um sistema econômico, social e político que lhes garanta, e a todos indistintamente, um porto seguro em meio a essa tempestade violenta que se abate sobre a humanidade.  Não merecemos isso! Precisamos de outra forma de produzir a nossa existência, na qual a socialização dos meios de produção e a organização política garanta condições para que todos possam trabalhar e usufruir em condições de igualdade da riqueza que todos ajudamos a produzir, para que em momentos como esse, a vida, toda ela, esteja em primeiro lugar.

*Cláudio Eduardo Felix dos Santos: Professor na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do BLOG DO ANDERSON


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