Zé Raimundo Fontes: O Dois de Julho e a importância da Bahia na Independência do Brasil

Foto: BLOG DO ANDERSON

José Raimundo Fontes

A história nem sempre é um “carro alegre cheio de um povo contente” e muito menos uma “carroça abandonada numa beira da estrada”, como poetizaram Pablo Milanés e Chico Buarque. Seja como lembranças individuais, seja como   memória coletiva ou ainda enquanto narrativa sistematizada, com fundamentos metodológicos e pretensamente explicativos, a história está intrinsicamente ligada ao registro das condições e ações humanas no tempo. Nesse sentido, todo passado pode ser história. Contudo, há feitos, acontecimentos e episódios que se sobrelevam e marcam épocas e momentos no transcurso das sociedades. Todo tempo presente carrega em suas entranhas componentes pretéritos. O passado nunca morre pois é preservado, socialmente, tanto nas instituições-memória quanto nas comemorações, nas efemérides, nas celebrações e rituais coletivos. Aqui reside o real significado dos festejos e lembranças de determinados acontecimentos e datas, como são os casos do 7 de setembro e do 2 de julho. Confira na íntegra.

Neste dois de julho de 2020 completam-se 197 anos da vitória das tropas militares da Bahia sobre o exército da coroa portuguesa, episódio que selou a independência do Brasil, afastando o perigo da tentativa da Monarquia Lusitana em manter o controle do vasto território brasileiro. Estamos, portanto, há pouco mais de 2 anos para o bicentenário da Independência do Brasil e há 3 anos para os duzentos anos que expulsamos os portugueses da Bahia.

Na verdade, como nos ensinam os grandes mestres da historiografia baiana, o mais correto é dizer, quando fizermos referência ao dois de julho, Independência do Brasil na Bahia. De fato, só se pode entender o processo histórico que leva ao desfecho da nossa independência se consideramos o papel decisivo desempenhado pelos baianos nos principais episódios que marcaram a conturbada e tensa conjuntura, que se inicia com a chamada Revolução Liberal  do Porto, em 24 de agosto de 1820,  e transcorre os anos seguintes até a derrota das tropas comandadas pelo Brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, em 2 de julho de 1823.

Durante todo esse período que permeia essas balizas cronológicas, a Província da Bahia jogou um papel decisivo, tanto nas motivações iniciais quanto no desenrolar e no desfecho da crise de poder que culminou com a ruptura entre o Brasil e a pátria de Camões. Nesse quadro estão inclusos alguns acontecimentos cruciais, como o apoio dos baianos à revolução do Porto, em sua primeira fase, quando pretendia elaborar uma constituição e instaurar uma Monarquia Liberal Constitucional em Portugal. Posteriormente, todavia, uma fração da elite local se rebelou contra as decisões das Cortes de manter o Brasil subordinado a Lisboa e deliberar pelo retorno de D João VI, o que aconteceu em 26 de abril de 1821. Este grupo viria a se consolidar enquanto uma força política ativa e avançou na tese da independência política do Brasil, defendendo autonomia política e econômica, além da constituição de forças militares próprias e   garantia de liberdade de comércio. Esse antagonismo local expressava, na verdade, as duas grandes hipóteses na resolução do conflito em jogo em âmbito nacional: seguir as orientações das Cortes ou romper com elas, sinalizando para a organização de um poder nacional autônomo. Assim, durante o resto do ano de 1821 e no transcurso de 1822, todas as posições  tomadas por Portugal no sentido de manter o controle da colônia brasileira são rechaçadas pelos baianos, que passam a defender a separação do Brasil da Coroa portuguesa propondo,  de forma hegemônica, a  entronização do filho de D João VI como monarca brasileiro.

É nesse contexto que  se insere um conjunto de decisões, atitudes e acontecimentos, tendo como palco a cidade de Salvador e o recôncavo, que serão decisivos para o simbólico “grito de independência ou morte”,  do 7 de setembro, entre os quais merecem referência “ o dia do fico ”, em Janeiro de 1822; a recusa dos militares baianos  em aceitar o comando  do  português Inácio Luís Madeira de Melo, nomeado em fevereiro   para o cargo de Governador das Armas, substituindo o brasileiro  Manuel Pedro de Freitas Guimarães; o ativismo  político das  Vilas do Recôncavo, entre os meses de junho e julho,  para  a aclamação de D. Pedro I como Príncipe Regente; a mobilização militar de tropas e da população para resistir às  várias tentativas do exército português   de ocupar postos estratégicos no recôncavo, especialmente a ilha de Itaparica, núcleos produtivos, comerciais e vias terrestres, para viabilizar o abastecimento de Salvador.

O gesto político de D. Pedro em não obedecer às orientações das Cortes aguçou ainda mais as tensões na Bahia. Mesmo antes do episódio do Ipiranga, o staff de D. Pedro sabia que o controle da Província Baiana, por parte Portugal, era essencial para uma tentativa de resistir à separação e, em caso de sua ocorrência, para uma tática de manter as regiões do Nordeste e Norte sob o controle português. Por isso a decisão de reforçar militarmente a Bahia, com o envio de tropas, já em julho de 1822, comandadas pelo general francês Pedro Labatut, que viria a ser, a partir daí, um dos principais líderes do exército brasileiro. Por seu lado, as forças portuguesas continuarão tentando penetrar no Recôncavo e se apossar de postos no litoral sul, sem sucesso.

Após o grito do Ypiranga, ao longo dos fins de 1822 e primeiro semestre de 1823, o cenário dos conflitos foi se reduzindo ao espaço da Baia de Todos os Santos, tendo como epicentros a Ilha de Itaparica e a cidade de Salvador, especialmente em função do reforço de 10 navios da marinha portuguesa, com soldados, armas e munições. Mesmo assim, Madeira de Melo não consegue romper o cerco e fica isolado, após a batalha de Pirajá, ocorrida em 9 de novembro de 1822, que fecha a porta de saída pelo Norte. Nos meses seguintes, as operações militares portuguesas ficarão restritas à cidade de Salvador, a localidades próximas do litoral interior e à Ilha de Itaparica, onde se verificam escaramuças em janeiro de 1823.

Percebendo que o ponto forte das forças portuguesas estava reduzido ao domínio marítimo, os estrategistas de D. Pedro, além de reforçarem as tropas terrestres,   contratam o mercenário  inglês   Almirante  Lord Cochrane, que assume o comando  da Marinha do Brasil e, junto com Labatut e, posteriormente, com o Coronel Joaquim José de Lima,  nomeado comandante-chefe do Exército no lugar de Labatut,  organizam, entre abril e meados de junho, o cerco de Salvador por terra e por mar.

Enquanto os grupos dirigentes de brasileiros se unificam e se fortalecem, no mês de junho, com a posse da Junta de Governo da Província da Bahia, na cidade de Cachoeira, nomeada por D. Pedro I em 5 de dezembro de 1822, o comando português vai se fragilizado política e militarmente. Sem condições de suprimento das tropas e de abastecimento da cidade, Madeira de Melo vai arquitetando o plano de partida e de rendição. Finalmente, no dia 30 de junho de 1823 a cúpula portuguesa, esgotada, começa a negociar os termos para se retirar do Brasil. Mesmo não se rendendo oficialmente, na madrugada de 2 de julho os navios portugueses deixam Salvador.

Não restam dúvidas de que a Bahia exerceu um papel decisivo para o desfecho da nossa independência, constituindo-se o 2 de julho no marco simbólico desse processo. Na proximidade do bicentenário desses acontecimentos é importante, desde já, despertar e mobilizar instituições públicas e a sociedade civil para o início do planejamento de uma vasta programação envolvendo   diferentes dimensões daquela conjuntura histórica. Para nós baianos, os festejos dos 200 anos da independência do Brasil devem se estender e ressaltar o nosso dois de julho,  aproveitando a  oportunidade para promovermos uma  profunda e sistemática reflexão sobre o nosso passado e de como essa trajetória histórica se processou até o presente, procurando tirar lições dos sonhos e das lutas dos que se empenharam na  construção da nação brasileira.

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