Jeremias Macário de Oliveira | jornalista e escritor
“O novo país independente nascia empanturrado de escravidão. E assim permanecia até quase o final do século XIX. Homens e mulheres escravizados perfaziam mais de um terço de toda população, estimada em quase 4,7 milhões de habitantes. Outro terço era composto por negros forro e mestiços de origem africana, uma população pobre, carente de tudo, dominada pela minoria branca e que sequer seria contada entre os cidadãos, ou seja, brasileiros aptos a votar, serem votados e decidir o futuro do novo país. Os indígenas, a esta altura já dizimados por guerras, doenças e invasão de seus territórios, sequer apareciam nas estatísticas”. Este texto narrado pelo jornalista e escritor Laurentino Gomes, no terceiro volume de “Escravidão” registra o cenário da época da independência, em setembro de 1822. As descrições se encaixam na atual realidade de 200 anos atrás. Ele ainda fala do Calabouço, uma empresa do Estado, onde os escravos eram para lá levados e açoitados. Naquela época, os negros eram presos pelos motivos mais banais como andar na rua “fora de horas”, comportar-se como suspeito, demonstrar “atitude estranha” ou simplesmente estar parado numa esquin. Confira o artigo de Jeremias Macário.
Para os pobres e desvalidos da sociedade que têm seus direitos violados todos os dias, nada mudou depois de 200 anos. A nossa polícia é violenta, a escravidão, inclusive a trabalhista, continua de outra forma mais sofisticada, e o Calabouço, um lugar sujo, fedorento e macabro como nos tempos medievais, foi substituído pelas cadeias e penitenciárias superlotadas onde são amontoadas as camadas mais miseráveis, vítimas de uma sociedade que lhe virou às costas, negando educação, saúde e saneamento básico.
Do contingente dos indígenas que há 200 anos eram dizimados por doenças e guerras, sobraram algumas aldeias ameaçadas de serem expulsas de suas terras pelos garimpos clandestinos, sem contar que crianças e idosos estão morrendo por falta de assistência médica, que o Estado, por obrigação, deveria proporcionar a essa gente. O quadro não mudou. Talvez, se formos comparar alguns dados, até piorou porque lá fora o nosso país é visto com de selvagens, com pena e vergonha.
Portanto, o que temos a comemorar nesse bicentenário, quando as florestas estão ardendo em fogo e o nosso meio ambiente sendo destruído? Vamos celebrar a evolução industrial e as novas tecnologias eletrônicas, ainda atrasadas e provincianas em relação a outras nações desenvolvidas? Uma festa verde-amarela de muitas pompas, desfiles militares, tanques, soldados, e civis nas ruas, tremulando suas bandeirinhas, não vão apagar nossas mazelas que são muitas e negativas. Ainda não vivemos uma democracia ideal que é manchada pela fome de mais de 30 milhões de brasileiros, sem falar nos 12 milhões de desempregados.
No sete de setembro de 1822, a escravidão era, na definição de José Bonifácio de Andrada e Silva, o patriarca da independência, um cancro que contaminava e ruía as entranhas da sociedade brasileira. O racismo persiste como um cancro, e 200 anos depois ainda estão discutindo a questão da cor da pele e odiando uns aos outros, numa nação dividida pelo preconceito e a discriminação. As leis foram feitas para proteger os poderosos que ficam sempre impunes pelos seus crimes de corrupção e ladroagens.
O mais contraditório nisso tudo é que os índios e os negros foram os que mais lutaram para consolidar essa independência, caso da Bahia em 1823, e depois foram excluídos do processo de inclusão. O Brasil foi o último país do ocidente a abolir o regime escravista, depois de Cuba (1866) e Estados Unidos, em 1865, depois de uma guerra civil que resultou na morte de 750 mil pessoas. Em nosso país, a marcha foi bem lenta, começando em 1850 com a Lei Eusébio de Queiroz pondo fim ao tráfico negreiro, que não era cumprida. Em 1871 foi proclamada a Lei do Ventre Livre, e em 1885, a do sexagenários. Por fim, a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888.
“Os ex-escravos e seus descendentes foram abandonados. A segunda “abolição” defendida por muitos abolicionistas, jamais aconteceu. O Brasil nunca se tornou uma “democracia rural”, mediante uma reforma agrária, como preconizava André Rebouças. Jamais educou, deu moradias, renda e empregos decentes, como propunha Joaquim Nabuco. Nunca promoveu os negros e mestiços brasileiros à condição de cidadãos plenos, com os mesmos direitos e deveres assegurados aos demais brasileiros, como desejavam Luiz Gama e José do Patrocínio” – destaca Laurentino em suas obras.
O autor diz mais ainda, que tanto os negros quanto os indígenas foram e continuam vítimas de um processo sistemático de genocídio, na forma definida por Abedias Nascimento. Como também assinalou Florestan Fernandes, o escritor de “Escravidão” concorda que esse processo de genocídio começou no passado e permanece em andamento no presente. “Da escravidão, no início do período colonial, até os dias que correm, as populações negras e mulatas têm sofrido um genocídio institucionalizado, sistemático, embora silencioso” – escreveu Florestan.