Jeremias Macário | eu nasci há 200 anos atrás

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Jeremias Macário de Oliveira | jornalista e escritor

Eu vi quando o príncipe imperador D. Pedro I decretou o “Dia do Fico”, em janeiro de 1822, desobedecendo a ordem do seu pai D. João VI de retornar para Lisboa por causa de suas molequeiras e gastos demasiados.  Ele tomou gosto pela coisa e foi ficando na vida boa do Rio de Janeiro, fazendo suas “artes” e dando corno na princesa, a torto e a direito.  Parafraseando o cancioneiro, poeta e visionário Raul Seixas, que tudo viu e tudo falou, eu nasci há 200 anos atrás e me chamo Brasilino da Silva Santa Cruz. Estava lá naquele mundaréu de escravos africanos, de muita gente analfabeta bem longe dos senhores barões quando o imperador soltou aquele grito de “Independência ou Morte”, no riacho Ipiranga, no dia sete de setembro de 1822. Naquele ano eram quase cinco milhões de habitantes. Confira a crônica de Jeremias Macário.

   No momento, o povo passava com seus burros, alforjes e cangalhas e nada entendeu daquele alvoroço. Como no quadro de Pedro Américo, o renegado até pensou ser uma briga entre eles, o título de um novo samba improvisado ali mesmo, um canto sertanejo, uma sofrência, arrocha, um pagode ou axé que depois virou hino de “um gigante adormecido em berço esplêndido”, de um Brasil varonil, retumbante, céu cor de anil e outros palavreados complicados que até hoje pouca gente compreende.

    Eu estava lá e vi que foi uma independência de gente rica cunhada na maçonaria, com a pena de uma princesa chamada de Leopoldina, e um tal de José de Bonifácio de Andrada, tramando uma separação. O povão se juntou na praça da capital, dançando e falando palavras de liberdade, liberdade! Depois todos foram para seus casebres, mocambos e descobriram que não passaram de penetras numa festa de gente branca metida a europeia. Foi uma independência dependente!

   O negócio foi sério, tanto que os portugueses não gostaram nada daquele grito presepeiro. Então eu vi, logo em seguida, quebrar o pau na Bahia, Piauí e no Pará. Foi uma guerra de faca e facão contra armas de fogo. Os baianos foram à luta, com negros e indígenas, em junho de 1823, e só terminaram a peleja em dois de julho do mesmo ano. Até uma mulher se vestiu de homem para brigar e expulsar os portugueses.

    Com aquela popularidade toda, D. Pedro aproveitou, e junto com seu ministro Bonifácio, inventou de fazer uma Constituinte ao estilo da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, mas só saiu uma titica de carta real aristocrática, em 1824.  Brasilino leu e não gostou do que viu. Só papo furado. Brasilino viu os excluídos esfarrapados e os africanos cativos, que até ajudaram a pagar uma indenização cara de dois milhões de libras esterlinas pelo divórcio feito com o reinado de Portugal.

   Tudo continuou na miséria com uma independência empanturrada de escravos por todos os lados. Eu vi negros desembarcando no Valongo, levando chibatadas no Pelourinho do Calabouço e sendo surrados nas fazendas de café. Vi senhores estuprando negrinhas nas senzalas. Tempos de sofrimento e muita dor, choro e lágrimas.

   O príncipe perdeu forças, e Brasilino viu quando ele embarcou num navio de volta para Portugal, em 1831, deixando para trás seu filho Pedro II de doze anos. O Parlamento proibiu o tráfico negreiro naquele ano, mas a oligarquia rural não quis saber nada disso e fazia os embarques e desembarques clandestinos de cativos. Todos eram coniventes, até as autoridades reais.

   Veio a Lei Eusébio de Queirós, em 1850 e, mesmo assim, os navios furavam o cerco e comercializavam escravos. O tempo passou e eu vi quando a princesa Isabel sancionou a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, quando seu pai curtia viagem pela Europa. Naquele tempo só haviam cerca de 750 mil escravos. O resto já estava alforriado, mas na miséria de sempre.

    Os barões, os duques, os marqueses, os viscondes, condes e os coronéis não gostaram de “libertar” seus cativos, tratados como animais de carga e resolveram se vingar. Eu vi quando eles se uniram ao marechal Deodoro da Fonseca e deram outro grito para arrancar o velho D. Pedro II que tirava uma soneca no trono. Isto foi em novembro de 1889. Independência dependente!

   Brasilino estava lá quando criaram a tal República, coisa que nunca foi pública, só deles mesmos. Logo em seguida, já no raiar do século XX, Floriano Peixoto baixou uma ditadura e, de lá para cá, só pau e crises, com uma democracia mambembe do tipo tupiniquim.

    Nessa República, eu vi de tudo, coisa do arco do velho, de Deus e do satanás. Vi e tomei muito café com leite entre São Paulo e Minas Gerais, até que apareceu um gaúcho, lá dos pampas do Rio Grande do Sul, e golpeou a República. Seu nome era Getúlio Vargas, que em 1930, com mão de ferro tascou outra ditadura, e tome tortura. Até o Brasilino foi preso e apanhou muito na cadeia.

    Mais manso, o gaúcho voltou em 50, mas não suportou a panela de pressão. Estourou e ele resolveu se suicidar. Entrou general no meio e queria botar os tanques nas ruas. Teve uma tal de Lott que impediu o golpe. Brasilino já estava soltou e acompanhou tudo de perto. Aos troncos e barrancos, um cigano de nome Juscelino foi eleito presidente. Eu vi quando ele construiu uma Brasília, em 1960.

   Depois entrou um doido de nome Jânio Quadros e botou tudo a perder. O covarde renunciou. Ai meu amigo, a coisa fedeu mesmo. Botaram merda no liquidificador. Mais um gaúcho chamado Jango quis socializar os bens. Até que Brasilino ficou animado, mas os generais acabaram com a festa e meteram fuzis e metralhadoras em todo mundo.

   Eu estava lá e vi toda bagaceira. Foi muita gente morta e desaparecida. Os fardados de coturnos ficaram no poder por quase 30 anos, jogando gente nos porões das mortes. Tudo era feito na base das indiretas, sem nada de civil. Com muita sofrência, no Congresso ganhou um mineiro de nome Tancredo Neves, mas “morreu” antes de assumir. Entrou um bigodudo marimbondo do Maranhão.

   O resto, Brasilino nem precisa mais contar porque quase todo mundo já sabe do Collor (parece com marca de tinta) que logo foi deposto. Entrou um Fernando Henrique que passou o bastão para um nordestino pau-de-arara que fez uma confusão danada com o troca-troca de favores entre ser pai dos pobres e mãe dos ricos. Dizem que houve muita roubalheira.

    Há duzentos anos, meus camaradas, nunca vi coisa tão feia. Um maluco psicopata, junto com evangélicos fanáticos, nazifascistas, racistas, misóginos e homofóbicos, tomou o poder, e agora os doidos extremistas defensores da supremacia branca batem todos os dias nas portas dos quarteis para que eles voltem a governar sob com a marreta da ditadura.

   É Brasilino, você está ferrado! Agora você está num fogo cruzado, denominado de tempo eleitoral, entre o ódio e a intolerância, numa disputa de vida ou morte, do tipo vale tudo. Depois de duzentos anos será que virá por aí outro grito de “Independência ou Morte”? Se você que está aí há duzentos anos vendo toda essa presepada, não sabe, imagina eu.


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