Euvaldo Cotinguiba Gomes | professor
Assim como todas e todos, estou bem preocupado com os rumos da barbárie em nossas escolas. A educação e o espaço escolar era um dos últimos fronts pacifistas que restavam na sociedade, mas ele acabou sendo sitiado. Sitiado estrategicamente pelo medo e em seguida ocupado pela tática armamentista como solução. Rapidamente são apresentados projetos de lei, votados e aprovados. Sobre isso a Folha de São Paulo deste dia 15.04 trouxe levantamento em que mostra que nesta semana findada, tivemos por todo o país uma rápida e frenética resposta à sociedade por parte dos políticos em suas diversas instâncias – Federal, Estaduais e Municipais – apresentaram 102 projetos de lei para segurança nas escolas nos 26 Estados da Federação e no Distrito Federal. Destas proposições a grande maioria segue o que podemos denominar de vertente armamentista, pois sobressai as propostas que têm como foco a instalação de equipamentos de vigilância, contratação de profissionais para rondas e vigilância armada. [FOLHA DE SÃO PAULO, 15.04.2023]. Confira o artigode do Professor Euvaldo na íntegra.
Para entender de forma sintética essa questão e o fato dela se escancarar agora é necessário lembrarmos que aceitamos ao longo destes anos que o nosso processo comunicativo se desse por meio das redes sociais, onde os afetos predominantes são negativos, onde a linguagem do ódio, do medo e do pavor generalizado prevaleceu; permitimos o desenvolvimento de hábitos em toda a comunidade de maneira que essa passasse a agir de forma altamente eficiente e eficaz para a disseminação do terror e do medo em pouquíssimo tempo; basta curtir, clicar e compartilhar, um hábito tão bem desenvolvido nestes anos todos de treinamento passa a ocorrer quase que como um instinto primitivo nos indivíduos. Sei que nossos instintos primitivos são altamente eficazes, mas nem sempre são eficientes para a conservação da vida, por vezes eles aceleram o fracasso ou até o fim da espécie. Neste movimento de seguir os instintos, o homem acessa rapidamente também o seu estado natural mais primitivo, o da barbárie.
A escola em todos estes anos contribuiu significativamente para esse processo enquanto centro de desenvolvimento, embora fosse e estivesse até bem recentemente como um espaço de resistência a ele, sobretudo pela falta de recursos a ela disponibilizado para que pudesse acessar aquilo que ela própria produziu, contudo, um acontecimento não previsto – a pandemia – acelerou o naufrágio da escola e de todo o processo educacional no mar revolto das novas tecnologias. De alguma maneira, neste ínterim, democratizam os afetos negativos sobre a cabeça de nossos estudantes, eles que até então encontravam na escola um espaço de fuga para o caos social e afetivo no qual se encontravam metidos, passaram a ter ali um vasto celeiro onde pudessem ser cevados e preparados para o abate final. É neste complexo e emaranhado caos que eles se tornaram presas fáceis, arrebanhados diariamente e postos à disposição do seu carrasco. E pasmem, o carrasco tem sido por vezes um outro jovem, um ex-colega, um ex-aluno etc. Nesse conturbado cenário, vítimas e carrascos se confundem, o estudante que é vítima do caos pode facilmente se tornar carrasco nele. E nós, enquanto sociedade, estamos intensificando e potencializando que os piores hábitos passem a gerir e resolver a crise, o hábito de resolver a violência com mais violência. A mensagem que passamos neste momento aos nossos estudantes é clara: armas, vigilância, controle e licenciosidade para a arbitrariedade são postas quase como caminho único para se resolver ou pelo menos controlar o caos em que nos metemos.
Estamos agindo instintivamente, até o momento não paramos para olharmos e questionarmos que há um processo de criminalização desenfreado dos próprios estudantes. Tenho visto e ouvido mais e mais protocolos para que os pais e educadores fiquem atentos; indicam aos pais que revistem as mochilas dos filhos, que vasculhem as conversas nas redes sociais, que olhem as gavetas, que confiram os casacos e por aí segue a solução fácil para o problema complexo. Tem até defesa de porte de armas aos educadores como medida de segurança. A sociedade que há anos dispensou seus filhos no depósito da escola agora grita em alerta dizendo que é preciso tratá-los como suspeitas, pois é isso que estão a fazer ao descarregar protocolos de procedimentos invasivos e desrespeitosos para com os filhos. É exatamente isso e não há outro nome, uma sociedade que trata estudantes como suspeitas ao final só poderá encontrar criminosos, pois se não existirem, neste processo, acabaremos por formá-los.
Será possível pararmos por um instante e notarmos que esses métodos são os mesmos adotados nos presídios e em todos os demais espaços sociais? Será que é possível pensar por um minuto que o seu filho está com você desde o dia que ele nasceu e que você o está colocando numa posição de suspeita ao bisbilhotar as suas coisas todas? Será que como pai, mãe e educador você pode ter uma relação com outro olhar para com ele que não o de suspeita? Como chegamos a esse ponto e não pararmos para refletir que a sociedade toda está embarcando justamente no modelo e na forma que até hoje não deu certo? A escola atacada e violentada responde mecanicamente com mais violência e estupidez do que os próprios assassinos, pois segue os protocolos falidos que temos em nossa sociedade e que nunca deram certo, tanto é que a violência e a criminalidade aumentam tanto quanto o número de armas e medidas violentas que nela adotamos. De um dia para outro resolvemos transformar nossas escolas em centros presidiários devidamente organizada com rondas policiais, segurança armada, câmeras de vigilância, catracas, detectores de metal, portas giratórias, reconhecimento facial, brigadas de segurança, servidores treinados para agirem como cães de guarda e farejar possíveis psicopatas nas salas de aulas. É triste, mas não podíamos esperar muito além disso dessa estrutura que discursa modernidade, arrota libertação, promete autonomia, mas se desenvolve num espaço projetado com arquitetura de presídio e que agora passará por uma modernização para mais semelhante se tornar a estes com tudo que lhe faltava. As semelhanças não são meras coincidências.
De um dia para outro escolas que não têm recursos para merenda passa a ter ronda policial, vigilância, circuito de filmagem, identificação na portaria e segurança armada fazendo rondas em seus espaços; do nada escolas que não tem psicólogo e pedagogo para atender estudantes abre canais de denúncia para que colegas entreguem aqueles que por algum motivo possam ter cara de suspeita devidamente identificado pelo colega que talvez um dia até tenha praticado bullying contra o mesmo. Fomos tão eficientes que os alunos, que antes não se preocupavam em vir com os uniformes para a escola, agora nos perguntam se poderão vir com colete à prova de bala.
Essa é a escola que acabamos de criar e inaugurar neste primeiro quarto de século XXI. Essa escola e esse modelo de educação não serve ao tamanho do problema que temos e que com tais políticas e rumos tende a piorar. Seguimos com a certeza e devidas atualizações daquilo que dizia Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é crise; é projeto”.
Professor de Filosofia, Instituto Federal Baiano – Campus Itapetinga, é bacharel e licenciado em Filosofia, mestre em Educação.