Ruy Medeiros
Em determinados momentos da história, a sensibilidade do escritor é despertada pela lembrança associada ao risco. É como se, na consciência do intelectual, um sinal de perigo o alertasse e ele então voltasse para a memória de sua sociedade para abrir o sinal vermelho do risco. Exemplo eloquente desse fenômeno literário – com grandeza – está em Arthur Miller. Quando o macartismo tomava conta dos Estados Unidos, com chantagens, censuras, interdições de direitos, prisões, expulsão de pessoas de seus empregos, processos etc, tudo sob falsa alegação de investigar atividades antiamericanas, a memória de Arthur Miller visitou o passado: numa comunidade de Massachusetts, em fins do Século XVII, dezenove pessoas foram julgadas e enforcadas. Continue a leitura do artigo do Doutor Ruy Medeiros.
Seu crime? Feitiçaria. Adolescentes de famílias puritanas foram acusadas de, em companhia de uma negra nascida em Barbados (ilha das Antilhas) prática de rituais amorosos de feitiçaria. Logo, com insistência, surgiu a acusação: por intermédio de jovens, o demônio estava atuando contra a comunidade e sua religião. Delações aparecem em vários locais da comunidade. “Pessoas importantes” são acusadas por aquelas jovens de idêntica prática. A perseguição desenfreada, se estabeleceu e o fanatismo ocupou o primeiro plano na comunidade puritana. Era a caça às bruxas. E, séculos após, já no XX, a paranoia de Massachusetts, sob a forma política de macarthismo reaparecia. Assim, leitores aos milhares perceberam a mensagem: com a peça The Crucible (mais conhecida com o título do filme que ela inspirou – As Bruxas de Salém), baseada em fatos reais, Arthur Miller falava sobre algo que, em essência, era da natureza do macartismo: o comportamento fanático contra adversários ou contra os que pensam diferentemente
No Brasil de nossos dias, marcado por absurdos pregados e praticados por políticos que sonhavam (e sonham ainda!) com o restabelecimento do terror de estado, algumas obras de ficção também visitaram o passado, com suas bruxas e bruxos e seus perseguidores com vestes talares ou fardas, isto é, reviveram a história real vista sob a forma de ficção, em romances fundamentais: “Cabo de Guerra”, de Ivone Benedetti, “Um dia esta noite acaba”, de Roberto Elisabetsky; “Arrigo”, de Marcelo Ridenti (Editora Boitempo), “A noite da espera”, de Milton Hatoun (Companhia das Letras). Julguei necessário falar disso a fim de apreciar um belíssimo romance, de autoria de Ana Isabel Rocha Macedo: Maria Mar estrela das ideias e do amor (Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 2023). É livro da natureza dos anteriormente referidos.
O romance Maria Mar é fruto da consciência, esteticamente conduzida, que se recusa dobrar diante da barbárie anunciada e que visita um passado algoz vivenciado por homens e mulheres, que hoje estariam na etapa de seus setenta anos, pouco mais ou menos. É o relato de vida de um jovem (percebe-se que conquistense), que após concluir o Curso de Pedagogia e já com noção de sentido que tem um regime de força, sua consistência opta pela liberdade, resolve participar de concurso público e, aprovada, assumir a cadeira de professora numa pequena comunidade litorânea. Sem romper, distancia-se da família, já órfã de pai, para em nível mais transparente de sentimentos, voltar a conviver bem com a mãe, embora em locais diferentes. Conflitos de família são superados, novas amizades feitas, novo relacionamento conjugal da mãe é aceito, cultivo de música e literatura toma novo sentido na vida daquela jovem. Naquela pequena comunidade encontra o amor na pessoa de um jovem que, clandestinamente, como outros tantos, combatia a ditadura reinante, e do qual a história é aos poucos revelada; Depois, um corpo de homem jovem é encontrado morto com sinais de tortura e, para a jovem, saudade, busca e tristeza. Digo pouco do enredo, a tessitura é valiosa, no entanto.
É um livro capaz de bem revelar sentimentos, sobretudo de solidariedade: das amizades espontâneas e construídas. Esse último romance de Ana Izabel fixa o leitor sempre na busca do próximo lance da narrativa. Como se diz, prende o leitor. A narrativa é vivaz, bem construída, de forma que mantem o leitor desejoso de saber o que o espera no próximo lance, ou qual é o desenlace.
Os personagens são muito bem construídos, o apelo do narrador virtual dá à narrativa o tom de uma conversa entre duas pessoas bem conhecidas e o leitor fica surpreso, nas páginas finais do livro, com a “identidade” de quem depõe a história conflitual entre tendências do sentimento humano, representado por pessoas e regime. Não revelei acima os meandros e final da longa história de vida retratada num romance que, não tenho dúvida em afirmar, inscreve-se num dos melhores que já li.