Luiz Queiroz | dê flores aos rebeldes que falharam

Foto: Ediçao BLOG DO ANDERSON

Luiz Queiroz | livre pensador

Década de noventa, o movimento estudantil retornara ao cenário politico com muita força. As mobilizações se realizavam pela arte, gincanas culturais, festival de músicas, poesia. As caras eram pintadas com as cores da bandeira do Brasil, se ouvia muito a música “Coração de Estudante” de Milton Nascimento, “Pra não dizer que não falei das flores” de Gerado Vandré e as ruas eram tomadas pelo mais generoso sentimento de humanismo. A alma da juventude era beijada pelo sentimento de indignação pelas injustiças cometidas por décadas, pela ditadura militar e a excludência provocada pelo sistema econômico.  Dos movimentos estudantis, dos grupos jovens da Igreja católica, das Comunidades Eclesiais de Base, surgiram vários e importantes líderes. Grêmios, associações de bairros, núcleos de base, muro pixado, panfletos rodados em mimeógrafo a álcool, reuniões até com as beatas da “Legião de Maria”, convocadas pela paróquia, estava valendo. O militante era o elo fundamental que ajudava a construir a consciência política de classes e manter viva a mobilização. Confira a íntegra.

Pepe Mujica escreveu : “O que seria deste mundo sem militantes? Como seria a condição humana se não houvesse militantes? Não porque os militantes sejam perfeitos, porque tenham sempre a razão, porque sejam super-homens e não se equivoquem. Não é isso. É que os militantes não vêm para buscar o seu, vêm entregar a alma por um punhado de sonhos”.

Jorge Alex era um militante, forjado na luta. Veio do movimento estudantil secundarista, ajudou criar associações de moradores, fundou partido político, formou-se em história e se tornou professor da rede pública, e obviamente ativista sindical.

Homem de grandezas, socialista, tinha em casa uma excelente biblioteca, sem contar a rara coleção marxista da Editora Progresso, uma obra prima do prelo de Lisboa. Seu olhar desfrutava um brilho que iluminava suas palavras, e elas deslizavam no seu corpo grande que reluziam na pele queimada, em um corpo de um gigante quase branco, quase negro, um autêntico guerreiro sarará, na visão de Luís da Câmara Cascudo “mulato alvacento, de cabelos vermelhos”.

Não existia um único movimento social que ele não participava, e vez por outra discursava mostrando a importância da resistência, da necessidade de construir um mundo justo e igualitário, capaz de eliminar as desigualdades, a fome, a miséria e as distâncias intelectuais.

Casado com Jéssica Pollyana, uma simpática, gentil e delicada mulher, feminista na linha Frida Kahlo, Simone Beauvoir, Ângela Davis, com quem teve dois filhos: João Jorge e José Alex. Sempre nos aniversários dos meninos alguns amigos eram convidados para beber cerveja, e tecer crítica às convenções sociais. Apesar das contradição eram um dos raros momentos que celebrávamos as amizades, compartilhávamos conhecimento e sonhos.

Tempo segue seu curso e como uma locomotiva o partido de esquerda ganha as eleições no Estado. Muitas esperanças, várias visões e experiências que poderiam mudar o curso da história.

Jorge Alex queria participar da gestão. Arre, nunca se imaginou que ele nutria essa vontade, e portanto ameaça o partido de que se ele não entrar no Governo se tornará oposição. Após algumas negociações é nomeado para ser assessor de uma secretaria de pouca importância, na capital do Estado.

Após beijos, abraços dos meninos e os olhos encharcados da Jéssica, ele altiva a voz e diz para família que vai cumprir sua parte na história. Assim ele parte para capital para assumir o posto ao qual foi nomeado. Em seguida a uma noite de cansativa viagem, pelo ônibus comercial que vinha de São Paulo para Patos na Paraiba, desembarca na rodoviária e logo enxerga um senhor segurando um papel com seu nome.

Um sujeito baixinho, levemente barrigudo, testa suada e a camisa azul marcada nas axilas, onde dava-se para imaginar que a sudorese tinha ido e voltado no tecido, era quase uma residente, em formato de meia pizza. Após identificado ele informa : “Doutor, sou motorista e o secretário pediu para vir buscá-lo e o espera no seu gabinete”.

Inimigo político do secretário, mas tinha que engolir a velha composição reformista, em nome da governabilidade. Ambos se cumprimentaram, entre mãos apertadas e olhos desconfiados surge a frase chave, dita pelo seu chefe: “O governador me informou sobre sua história e tenho muito que aprender. Jorge Alex, a carta branca para agir está nas suas mãos.”

Instalado em seu gabinete, a secretária bate vagarosamente à porta e abre, informa que terá uma reunião às 14:00 com vários membros da sociedade e antes fechar a porta pergunta : “O doutor quer é uma café?”, ele afirma e diligente vem o cafezinho e uma jarra de água, coberta por um pano de fino bordado.

Palmas, palmas, ensurdecedoras palmas, marcam a primeira reunião, logo ao se apresentar como representante do governo. Sem ao menos saber o que irá fazer no seu cargo, entona seu discurso com toda propriedade de quem não está entendendo nada : “Fui convidado pelo Governador, e aceitei a missão. Tenho “carta branca” e vim para fazer diferente”. Novamente aclamado, mais algumas palavras e encerra a reunião dizendo que sua instância está aberta para todos.

Após vários cumprimentos, abraços, tapinhas, ele se dirige ao sanitário, olha no espelho e tem sensação de que se tornou “o cara”. No caminho de volta à secretaria, o esperto motorista reafirma o que ele gostaria de ouvir, dizendo que está muitos anos trabalhando no governo e não ouviu um discurso tão poderoso como aquele, inclusive já tinha comentando com a sua mulher que está muito feliz com a nova administração. Com saco cheio de elogios, logo à frente o condutor vai pedir um aumento, um privilégio ou qualquer retorno financeiro.

Como parte do ritual, até para se igualar aos seus colegas, compra o primeiro terno, algo barato, naquelas lojas populares. Depois de paramentado tira uma selfie e envia para mulher, informado que tem muito trabalho a ser feito, manda um beijo para seus filhos e conclui que irá ao encontro da família no final do mês.

O retorno ao interior é de avião, primeira vez, uma experiência inigualável custeada pela gestão. Ao chegar em casa é menino chorando, cachorro gritando, mulher cobrando uma permanência maior, louça para lavar, boletos explodindo, cartão de crédito estourado e uma frase de alívio “por isso gosto da Capital, não aguento esse inferno”.

Reuniões, ovações, doutor pra lá e doutor pra cá, cafezinho, motorista, passagem de avião, ele termina sendo cooptado pela máquina de moer sonhos. Com pouco tempo vai sofisticar seus gostos, gestos e comportamentos. Aprende a afinar o bico para tomar vinho, fumar charuto embebido em conhaque e saborear salmão ao molho de maracujá.

No shopping center do poder, onde não existem janelas para o mundo externo, a pele vai perdendo o brilho do sol que queima, assim como o conforto do ar refrigerado dá uma sensação suave de embranquecimento. Embalado pelos comentários favoráveis à sua estética, modifica o penteado e melhora as vestimentas. Cada postagem nas redes sociais são chuvas de elogios. É nesse momento que passa defender o estado de direito e esquecer os sonhos revolucionários.

Foucault escreveu que o governo produz a sua própria verdade, e dentro dela será incorporado todo aquele que acha possível dominá-lo.

Esquecendo de suas origens, sendo pressionado a prestar algum serviço necessário, para os movimentos populares, atende ligações telefônicas sempre dizendo que está à disposição para ajudar. Quando é cobrado, sobre uma mesma demanda, diz em voz baixa e abafada : “estou em uma reunião”. Fechou o ciclo, nunca mais se conseguirá falar com ele.

Jorge Alex é a imagem mais clara da perspectiva reformista e da sedução que o poder promove. Em Marx fica claro que a “sociedade política”, o estado no capitalismo, nunca vai representar os interesses concreto do povo e muitos tombarão nas estradas das fantasias.

Depois, quando passar o efeito da picada da “mosca azul”, exonerado pelo poder político, voltará para suas origens mortificado pela insignificância, e nas salas de aulas deixará a amargura de quem perdeu sua identidade e capitulou pela efêmera doçura do poder.

Uma canção anarquista italiana diz: “mandem flores para os rebeldes que falharam”. Mandaremos.

Luiz Queiroz Março de 2024


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