Milhares de crianças da rede pública de ensino, escritores renomados, autoridades e um público diverso marcaram presença na Bienal do Livro Bahia, que começou oficialmente na sexta-feira (26), no Centro de Convenções de Salvador. Vencedor do Prêmio Jabuti, o autor baiano Itamar Vieira Júnior fez as honras do discurso de abertura para um auditório lotado de jovens. O tema desta edição é ‘As histórias que a Bahia conta’ e Itamar Vieira Júnior destacou que o estado já nos deu outros grandes nomes na literatura, como Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro: “Muitos autores saíram daqui para contar nossas histórias, para agigantar a língua portuguesa no mundo. Ter um evento como esse é importante para que a gente possa celebrar a cultura e para que a gente possa, enfim, tornar o Brasil um país de leitores”. O autor compartilhou, ainda, a sua experiência com a literatura e como fez dela a sua “profissão de fé”.
Itamar apontou que, num tempo em se fala sobre a morte da alteridade, “a literatura nos devolve o dom de se colocar no lugar do outro”, já que ler é como imaginar períodos da história que não vivemos e adentrar subjetividades de qualquer ser humano, lembrando que somos mais parecidos do que pensamos. O prefeito Bruno Reis disse que “nos próximos dias, Salvador será o palco principal do Brasil para escritores e leitores. É importante para estimular na garotada o hábito da leitura, para que tenham uma formação intelectual. Itamar é um exemplo de estímulo e estamos aqui para que a Bahia possa continuar sendo um berço da cultura brasileira, estimulando a chegada de novos talentos. É com muito orgulho que a prefeitura apoia esse evento”.
A secretária estadual de educação, Rowenna Brito, também evidenciou como a Bienal é um espaço capaz de estimular o hábito de ler entre os jovens. “Esse é mais um espaço para a construção do conhecimento, e de inclusão para nossos estudantes. Esse universo é nosso compromisso, e continuaremos reforçando a importância da democratização do livro”, disse. Também estiveram presentes o presidente da Fundação Gregório de Matos, Fernando Guerreiro; o subsecretário municipal de Cultura e Turismo de Salvador, Walter Pinto Junior; o músico repentista Bule-Bule; além de vereadores e deputados. No papo, as participantes trouxeram seus pontos de vista sobre o rótulo de frágil voltado ao feminino e sobre a revolução feminina no trabalho. A jornalista Luana Assiz lembrou como a história da escravização dificultou que mulheres negras fossem enxergadas como pessoas que precisam de cuidado e, por isso, a experiência de fragilidade não foi algo presente em suas vivências pessoais.
A colega Camila Oliveira brincou que, apesar de medir 1,55 cm, a figura frágil também não lhe representa. Interiorana, negra e mãe, a apresentadora contou sobre como foi criada e influenciada por mulheres fortes de sua família, incluindo a avó, mãe solo de três filhas. “A gente é educada socialmente para cuidar e o homem para ser eternamente cuidado. Isso sobrecarrega emocionalmente as mulheres”, disse.
A literatura baiana tem destaque especial na edição 2024 e, lado a lado, Luciany Aparecida, autora de ‘Mata doce’, e Itamar Vieira Júnior, trouxeram os bastidores de suas carreiras e criações. Autores de uma mesma geração, eles foram crianças nos anos 1980 e contaram sobre suas referências literárias. Luciany só veio a conhecer uma autora viva apenas na faculdade, a Helena Parente Cunha, que leu quando era adolescente. Já Itamar narrou seu atrevimento em ir até a casa de Jorge Amado pedir-lhe um autógrafo.
Elementos comuns nas obras dos dois escritores, a paisagem rural e as fortes personagens femininas também foram tópicos da conversa. Luciany contou que procura compor de modo a fazer a pessoa leitora saborear como é bom nascer em uma comunidade rural, em íntimo contato com a natureza. Servidor público de um órgão dedicado a questões agrárias, Itamar diz que escreveu histórias que espelhavam a vida como ele via.
Pautas como a religiosidade também vieram à tona no papo. Enquanto em ‘Torto Arado’ o autor ressalta o lado positivo da fé no jarê, ‘Salvar o fogo’ traz a forma negativa dela. A presença da religião católica dissolve laços comunitários, onde os dogmas viram fonte de desagregação, dividindo os povos entre o bem e o mal. Nisto, quem não se adequa recebe o rótulo de “feiticeira”, “bruxa”, entre outros.
“A igreja católica teve um peso importante para que o empreendimento escravista e colonial tivesse sucesso. Às vezes, isso fica apagado da memória e, no livro, eu me debruço nessas inquietações. Acho importante tocar nessas feridas para ver o passado, entender o presente e projetar um futuro diferente”, disse o autor.
Por fim, Luciany revelou que está escrevendo um novo livro em que a personagem também é uma mulher, vendedora de tecido. A história se passa no Vale do Jiquiriçá no século 19. Itamar também está com um trabalho no forno, mas preferiu guardar segredo.
O último painel do dia revelou o que jovens mulheres pensadoras da Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro têm em comum. A produtora de slam baiano Nega Fyah, a influenciadora de planejamento econômico Nath Finanças e a escritora e professora Lavínia Rocha falaram sobre protagonismo e feminismo negro em seus territórios.
Autora há 14 anos, Lavínia destacou que o processo de escrita foi fundamental para seu reconhecimento enquanto mulher negra. Seus primeiros livros, publicados quando ainda nem tinha entrado na adolescência, tinham protagonistas brancos. “Levei um tempo para entender minha identidade e isso se refletiu na minha obra”, disse.
Nega Fyah se divertiu ao dizer que Salvador é “uma terra descarada”: ao mesmo tempo em que lhe dá poesia e referência ancestral, a cidade também lhe tira muita coisa quando as violências de vários tipos a atingem pessoalmente e coletivamente. Ela falou do desafio de lançar de forma independente o livro ‘Ancestralitura’, obra que desafia o mercado literário tradicional ao colocar as poetisas de slams como escritoras. “Não somos só oralidade”, diz.
Nath Finanças comentou que os livros que teve contato sobre os temas de sua área eram praticamente todos escritos por homens brancos e engravatados. “São homens falando para você gastar menos, mas eles não falam para quem não tem renda. Não falam para pessoas pretas. Quando comecei a me especializar, tinha poucas mulheres falando sobre finanças e mulheres pretas não tinham espaço”, aponta. “E por que não vemos mulheres pretas falando sobre finanças? Porque não têm a oportunidade que merecem”, completa.