Lembranças de um retirante

Foto: Blog do Anderson
Foto: Blog do Anderson

Jorge Maia

Recordo-me daquele dia. O sol esbanjava calor. As pessoas saiam até as janelas das suas casas. Os passeios estavam cheios de curiosos. Todos dirigiam os olhares para o caminhão azul estacionado no meio da rua. Estávamos mudando para Vitória da Conquista. Assustado  e sem muita certeza do que estava ocorrendo, só então, quando c na carroceria do caminhão é que descobri é que descobrir que estava saindo de Aracatu. Leia na íntegra mais um artigo do professor Jorge Maia

Comecei a chorar por medo do caminhão e por sentir que uma parte da minha vida  ficaria ali. Era uma despedida da infância. Percorri, com o olhar umedecido, as ruas por onde brinquei. Estava deixando os “prados” por onde cavalgava em meu cavalo alazão da raça ” cabo de vassoura”. Deixava a minha manada imaginária. Sempre tão bem conduzida para os pastos e currais construídos pelos sonhos. Certamente não faltariam outros vaqueiros , audazes, valentes, os quais continuariam dando vida àquelas aventuras fantasiosas que apenas as crianças sabem como fazer.

O balanço do carro fez-me calar. Perdi o medo e passei , curioso a olhar o mundo que ficava para trás. Não podia pensar que a grande cavalgada estava por vir e que a aventura estava apenas começando.

A viagem foi longa. A estrada era cheia de buracos e de curvas. Vi, pelo caminho, pessoas carregado um saco, às costas. Eram andarilhos, retirantes. Pessoas que  por alguma razão estava deixando a sua terra, em busca de um lugar em pudessem ser acolhidas. Senti-me um pouco igual a eles.

A viagem durou mais de quatro horas. Finalmente, Vitória da Conquista. A visão da cidade era impressionante. A quantidade de pessoas, de carros e de casas deixou-me encabulado. Mas havia algo que chamou bastante a minha atenção. Afinal, era a primeira vez que eu via uma cidade grande. Nas ruas por onde o caminhão passava, até chegar o local em que eu passaria a morar, observei os postes de madeira e a fiação elétrica. Eu não sabia o que era aquilo. Acostumado com a roça, perguntei, depois de encontrar coragem, o que significava aqueles ” mourões”  com aquelas cordas estiradas e tão altos.

Fui motivo de riso por um bom tempo. Mais impressionante era alguém apertar um botão e a luz acender.

É certo que, já vai um longo tempo entre aqueles dias e dias atuais. A estrada já é asfaltada. As pessoas falam por telefone, a internet é uma realidade e uma moda. O mundo mudou. Os homens permaneceram os mesmos.

Ainda vejo nas estradas, os retirantes. A mesma bagagem leveda às costas. O mesmo ar de desolamento. O pouco brilho dos olhos, como a pedir socorro. O retirante é o migrante mais pobre. Expulso da sua terra pelos mais variados motivos. Quem sabe  até por dificuldade de adaptação ao seu meio. É um deslocado em busca de um lugar onde possa encontrar a sua paz.

No encontro Eucarístico de 1980, em Fortaleza, o tema foi o migrante e o hino a ele dedicado fala da sua solidão, das suas dificuldades, mas, sobre tudo, fala da esperança de um mundo melhor, de um Brasil que é uma grande cidade, onde o migrante encontrará: luz, vida e verdade.

O quadro ” Os Retirantes”  de Portinari é um momento de grandeza da arte, ao retratar de forma tão pungente a cena da partida, da caminhada do retirante, à vezes sem direção, alimentado pelo desejo de partir e deixar o lugar onde em sua infância construiu os seus sonhos. Deixa seu mundo, perde sua identidade, anula-se.O retirante é um misto de tristeza e de esperança. è diferente de ser nômade. É fuga. É expulsão. É sonho, e na maioria das vezes é pesadelo.

Nossas cidades estão cheias de retirantes. A maioria deles integra o grande batalhão dos que vivem um pesadelo. Não identificados como cidadãos, perambulam sem direção. Permanecem na periferia das cidades e da sociedade, enfrentando o preconceito, sofrendo as consequências onerosas da sua condição de retirante.

“A  retirança”  é um processo que enriquece, porque amadurece. As causas da sua existência, entretanto, são injustas, uma vez que são provocadas pela fome, pelo desespero e pela desigualdade.

A existência de retirantes, nas circunstancias lamentáveis a que assistimos, depõe contra o Estado, que se expõe desnudado, anunciando a sua falência e a necessidade de ser repensado, sem que o povo tenha de perder as conquistas já estabelecidas. O retirante, personagem marcado pelo sofrimento e desamparo, denuncia o Estado, a sociedade e, sobre tudo, a nação que se diz cristã. VC julho 1997

 

 


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